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CENAS – 68

março 28, 2008

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CENA 7- TRAVASSOS…

Meu contato maior com o Travassos aconteceu quando ele era presidente da UEE-SP e eu, universitário/seminarista e, como tal, participava do movimento estudantil, em 1966. Acontece que em 67 saí do seminário, num primeiro movimento, para ajudar meu pai que era feirante e tinha que batalhar pra sustentar os 7 filhos.

E eu ali, nas mordomias da vida religiosa, com voto de pobreza e tudo. Então tive que arrumar emprego e saí do ambiente universitário.

Concentrei as chamadas atividades políticas na Zona Norte, através dos grupos de jovens nas igrejas e de aulas de “religião” em vários colégios; acabei me envolvendo com o movimento dos secundaristas, que era bastante forte… mas disso volto a falar em outras cenas.

É que foi nesse contexto que encontrei o Travassos, pela última vez. Devia ser final de 67 ou começo de 68 e ele já era presidente da UNE.

Nos encontramos na rua, ele vindo sozinho, provavelmente fumando, paletó ao ombro sendo seguro por dois dedos, aquele seu jeito tímido que só mudava nas assembléias e comícios.
– “ E aí? Você sumiu – disse ele
– “Estou aí, na zona norte, dando uma força pro movimento secundarista”(tínhamos acabado de fazer uma grande panfletagem, que teve boa repercussão) – respondi eu.
– “Isso é bom. Boa sorte!”

E foi só. Não consegui puxar um papo qualquer. Eu sempre tive dificuldades em me relacionar com lideranças, autoridades, chefes e patrões.

Lembrando hoje o desenrolar da história: sua prisão em Ibiúna, a soltura no seqüestro do Embaixador Americano, seu exílio, a volta com a anistia… e sua morte besta em acidente … continuo achando o que pensei naquele dia: “Ali vai uma grande liderança.”

Provavelmente seria melhor do que aquelas que sobraram do movimento estudantil da época. Salvo melhor juízo, como diria o Riobaldo do Graciliano.

CENA 8 – VAI SALITRE AÍ?

Na cena anterior, falei das aulas de religião.

Foi um movimento importante de inserção (disse inserção? Disse-o bem,) dos seminaristas na comunidade. Através dessas aulas identificávamos as lideranças, que eram convidadas para a formação dos grupos de jovens de onde saíram grandes lideranças do movimento secundarista e universitário.

Mas a cena a que me refiro aconteceu bem no início dessas aulas, quando a gente mesmo não tinha tanta consciência política.

Estava eu ali, compenetrado com o projeto de conversão daquelas jovens almas, quando uma menina pergunta em voz alta, na frente de todo mundo:
– “É verdade que no seminário eles põem salitre na comida pros padres não sentirem desejo?
(Constate-se que era das mais saidinhas, bonitinhas, ou como direi… gostosa, pronto!)

Sem pensar muito, respondi:
– “Se põem, eu não sei. Mas se estão pondo, não está fazendo efeito”.
Pode não parecer, mas isso foi uma cantada. “Cantata Sacra”

CENA 9 – O SEGREDO DA MÚMIA

O envolvimento dos seminaristas no movimento estudantil não foi uma coisa gratuita ou inconseqüente. Já havia uma movimentação voltada para a inserção social dos seminaristas de maneira conjunta e organizada. Já em 64 nós tínhamos a nossa UNE.

Era uma organização que congregava seminaristas de todo Brasil. Em São Paulo pertencíamos à USMAS – União dos Seminaristas Maiores do Sul. (Jarbas me corrija aí se as denominações estiverem erradas) Tínha USMAS I e II, mas não lembro a abrangência geográfica. Participei de vários encontros: lembro de um nos Verbitas em Santo Amaro.

O que mais lembro é o Seminário Maior do Ipiranga, por causa da múmia.
(O USMAS era um movimento interessante, subdividido em vários Departamentos: Liturgia, Pastoral, Cinema, Movimentos de Jovens…Eu, pra variar, estava no de cinema.)

No encontro do Ipiranga, acabei ficando na equipe organizadora do encerramento, quando eram apresentados pequenos shows instrumentais, esquetes, corais, etc. Ficamos eu e o Savioli (o Savioli, mais conhecido depois como “Platão”, professor famoso de Português e Literatura do Equipe Vestibulares e da Letras da USP, teve uma experiência terrível com a repressão. Na época se dizia que morava junto com o “japonês cujo fusca cheio de bombas explodiu na Consolação”)

Voltemos à múmia( nada a ver com o Costa e Silva). Apresentamos uma esquete onde aparecia uma múmia que se mexia quando alguém contava uma mentira. Nem lembro como era o final da piada, porque o engraçado mesmo é que a múmia fora enrolada em lençóis brancos emprestados pelo seminário.

Lençóis que apresentavam bem visíveis umas manchas do que chamávamos de “polução noturna”. Em palavras mais poéticas, resultado de um sonho erótico de algum seminarista, que inevitavelmente usava cueca samba-canção.

Como dizia o velho provérbio latino: “Sêmen retentum venenum est.”

10- CASA DO ESTUDANTE DE VILA MARIA

Tive muitos contatos com o movimento secundarista, em especial na zona norte da Capital. Por isso ouso afirmar que em vários momentos, principalmente quando a repressão aumentou, o movimento secundarista foi maior que o universitário.

Naquele período, de 65 a 69, os movimentos de base com certeza foram mais fundos e radicais. Lembro do CEDOM, do Albino César, do GEPEF, de um colégio estadual do Imirim cujo nome não lembro. Mas o mais ativo era a Casa do Estudante de Vila Maria.

Todos os colégios tinham um grêmio estudantil atuante com eleições acirradas, festivais de música, poesia, artes plásticas,

Em 68 eu dava aulas de Religião no CEDOM, uma escola que mantinha os portões abertos, não precisava obrigar o pessoal a assistir aula (Diziam ao professor: “Se a gente for obrigado a assistir sua aula, como você vai saber se ela é boa?”).Dando uma de velho saudosista, “bons tempos aqueles”.

Hoje o CEDOM é totalmente murado, com apenas uma porta de entrada controlada.Deve ter até cerca eletrônica. E o pior: um muro onde já esteve pichado “Abaixo a ditadura. Anule seu voto”, tem hoje a epígrafe: “Votem em Conte Lopes”

Mas volto à Vila Maria. Sua Casa de Estudante era um modelo para os secundaristas.

Dali saíram lideranças não só políticas, mas culturais, literárias e artísticas. Mesmo quando a repressão era braba, em 69, e a luta arrefecia em outras escolas, a Casa teimava em sobreviver.

Participei ali de um grupo de Teatro, com direito a método Stanislavski, ensaiando uma peça russa (acho que era Tchecov) – “Todos contra todos” do teatro do absurdo. Espalhou-se, mais tarde que o cara que dirigia o grupo, cujo nome não lembro, era agente da repressão.

Acho que a Casa do Estudante de Vila Maria merece a recuperação de sua história, até para entendermos melhor a época.

CENA 11- PREFERÊNCIA NACIONAL

Era uma reunião preparatória para a organização de uma exposição de artes dos estudantes da Zona Norte. Bastante concorrida, com algumas personalidades do mundo artístico apoiando. Se não me engano estava Vera Gertel, mas posso estar misturando tudo.

No intervalo das conversas sérias alguém colocou a questão para saber qual a parte do corpo que você admirava no sexo oposto.

As respostas puritanas, representavam bem a timidez da época: a boca, os olhos, o sorriso, os cabelos… e outras purezas.
Até que o Iozito acabou com a hipocrisia e disse de boca cheia:
-“ A bunda…”

Devo dizer que foi um susto geral, porque não se usava essa palavra em público na época(67). A sorte é que estávamos cheios de Iozitos que foram desmascarando o falso moralismo que nos dominava.

O Iozito era representante da casa do Estudante da Vila Maria e depois foi editor de arte da Cláudia

EDUARDO SPOSITO

Bandeiras e resistência

março 28, 2008

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Lendo o post do Novelino UMA BANDEIRA NO CHÁ, fragmentos da memória de um acontecido lá pelos anos 63/64 vieram à tona.

Isso porque, penso eu, a imagem da bandeira brasileira portada por ferroviários em greve tem uma certa semelhança com a bandeira balançando ao vento no Viaduto do Chá por um herói solítário e anônimo.

Tinha eu meus 14 ou 15 anos quando uma das greves dos ferroviários parou os trens da Companhia Paulista de Estradas de Ferro.

Como de costume, alguns ferroviários, por medo ou outros motivos se tornavam os chamados “fura-greves” ou “pelegos”(termo que depois passou a ser aplicado a sindicatos que colaboravam com o Governo), estimulados pela Ferrovia, que claro, queria manter seus trens circulando a qualquer preço.

Os ” fura-greves” eram recrutados especialmente entre os maquinistas e seus ajudantes, pois eles faziam as locomotivas continuarem funcionando e os trens circulando, mesmo com falta de pessoal para as outras tarefas.

Essa situação produziu a cena!

Ferroviários em greve sentados e deitados nos trilhos e no limpatrilhos da locomotiva a vapor que avançava fumegando e ameaçando passar por cima dos grevistas.

Os ferroviários sentados no limpa-trilhos portavam uma grande bandeira brasileira e os sentados e deitados nos trilhos cantando o Hino Nacional Brasileiro a plenos pulmões.

Com um detalhe: meu pai era um dos grevistas!

Meu coração de criança acelerado pelo medo e pela emoção!

Felizmente tudo acabou bem.

O maquinista parou a locomotiva e ninguém se feriu. Prevaleceu a razão e a solidariedade, pois nesse momento o maquinista e seu ajudante se juntaram ao movimento grevista!

Antonio Morales

Mataram um estudante…

março 28, 2008

Hoje, 28 de março de 2008, é o quadragésimo aniversário da morte de Edson Luis, no Calabouço. Menino pobre do Pará, Edson ia ao Calabouço mais para filar uma bóia. Não era um militante. Mas uma bala acabou com sua vida numa manifestação mais reivindicatória que de protesto contra a ditadura. Sua morte gerou uma cadeia de protestos que foram crescendo por todo o país.

Não vou aqui falar de memórias ou narrar algum episódio ocorrido nos tempos escuros da década de 60. Quero apenas deixar um registro sobre os quarenta anos da morte de Edson Luis.

Uma bandeira no Chá

março 24, 2008

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O movimento andava meio recolhido. Parecia que a ditadura tinha conseguido calar a boca de todo mundo. Aí, no Calabouço, mataram um estudante. A notícia gerou indignação. Passeatas com milhares de pessoas pipocaram Brasil afora. Aqui em São Paulo, quase dez mil pessoas foram para as ruas. Houve muita coisa espontânea. A violência da ditadura gerou protestos de gente que até então andava acomodada. As manifestações não obedeciam a rigidez da correção política com a qual as lideranças de esquerda sonhavam.

Fui para as ruas depois de uma assembléia marcada por um tom emocional no IFT (Instituto de Formação Teológica de São Paulo) . Éramos uns cem estudantes de teologia. Quase todos fomos para a passeata. A cada passo, cantava-se o hino nacional. E a multidão gritava a pleno pulmões: “Mataram um estudante, podia ser seu filho”. O episódio me jogou na militância full time. A partir do protesto pela morte do Edson Luís, comecei a atuar na CG (coordenação geral do movimento estudantil), deixando as aulas de lado, passando horas sem fim na Maria Antônia ocupada e tentando aumentar a base do movimento em contatos com faculdades isoladas da Grande São Paulo. Mas todas essas explicações estão me tirando do foco. O que quero mesmo é narrar uma cena de 68 que não me sai da memória.

Quarenta anos depois, vejo com nitidez aquele moço sobre o topo de um dos pilares do Viaduto do Chá. Ele estava lá em cima (na minha memória o topo de metro e meio de uma das colunas do viaduto parece ter muitos metros). Destemido, sem se apoiar em nada, aquele moço agitava uma imensa bandeira do Brasil. Cantava, como todos nós, o hino nacional mais uma vez. E até hoje, acho que ele era a síntese do nosso protesto. Parecia não ter qualquer receio. Agia como um herói que levantava um estandarte com muita coragem e dava assim coragem a todos nós. E tudo isso é uma construção de memória que foi crescendo com o tempo. Não me lembro de mais nada daquela passeata, mas o moço corajoso agitando nossa bandeira lá no alto continua a ser uma imagem que ainda posso ver como se as coisas tivessem rolando agora (a cena, aliás, fica mais nítida, cada dia que passa). Quem era ele? Não era nenhum líder. Ninguém conhecido. Era apenas um cidadão indignado e corajoso. Para mim era e sempre será um herói.

Jarbas

Música e nostalgia

março 20, 2008

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Engraçado como as coisas acontecem.
Eu, bicho-moleque, criado livre no mundo
simples e rural de minha pequenina cidade natal
que um dia ficou para trás, num dia ensolarado
do ano de 1967, quando me mudei para a cidade
grande.

Esse mundo que começou a se desfazer no início da
adolescência, um pouco mais tardia naqueles tempos.
E começou a se desfazer junto com a ferrovia que
alimentou meus sonhos de criança e sustentou minhas
fantasias por longo tempo.

Agora sei que foi se desfiando aos poucos, antes só era
nítida como ruptura, quando pegamos o último trem para
mudarmos para a cidade grande.

Última viagem indelével na memória de um jovem adolescente
acenando para seus velhos tios na varanda da janela do trem
que passava bem em frente da casa da “fazenda” onde moravam,
naquele ano de 1967.

Tempos depois ao ouvir duas músicas do Milton Nascimento
uma onda de nostalgia e saudades se apossou de mim, pois
evocavam imagens muito caras para mim: Ponta de Areia e
Fazenda.

Ponta de areia
Clique para ver o vídeo

Composição: Milton Nascimento
& Fernando Brant

Ponta de areia ponto final
Da Bahia-Minas estrada natural
Que ligava Minas ao porto do mar
Caminho de ferro mandaram arrancar
Velho maquinista com seu boné
Lembra do povo alegre que vinha cortejar
Maria fumaça não canta mais
Para moças flores janelas e quintais
Na praça vazia um grito um oi
Casas esquecidas viúvas nos portais

Fazenda

Clique para ver o vídeo

Milton Nascimento
Composição: Nelson Angelo

Água de beber
Bica no quintal
Sede de viver tudo
E o esquecer
Era tão normal que o tempo parava
E a meninada respirava o vento
Até vir a noite e os velhos falavam coisas dessa vida
Eu era criança, hoje é você, e no amanhã, nós
Água de beber
Bica no quintal, sede de viver tudo
E o esquecer
Era tão normal que o tempo parava
Tinha sabiá, tinha laranjeira, tinha manga rosa
Tinha o sol da manhã
E na despedida,
tios na varanda, jipe na estrada
E o coração lá

Grupo de Jovens

março 18, 2008

Não sei como aqueles jovens e crianças começaram a se reunir nos fundos da igreja em construção. Não fui curioso sobre o início. Acho que ainda cometo esse pecado. Viver, no concreto, a tirania do presente e viver o fluir do tempo apenas na imaginação.

Talvez o encontro tivesse sido preparado com muito cuidado ou acabado de acontecer. Mais que sei, pressinto que Alfredo Caetano da Rosa, o Padre Rosa, recém-chegado pároco da igreja, tivera um papel fundamental no que encontrei:  dois grupos, um de jovens outro de crianças, auto-geridos e, de forma autônoma, ocupando um mesmo espaço: uma sala de tijolos sem reboco, ao lado e no fundo de um grande barracão aberto, construído sei lá para que.

Quando cheguei, vinha de um tempo sózinho. A adolescência, como é comum, tinha me afastado um pouco da família. A escola tinha me distanciado dos amigos de infância. Dos vizinhos da mesma idade, eu era o único que continuava a estudar. Eles não entendiam as minhas conversas “absurdas” sobre células, vírus, mapas, políticas, combinações químicas, equações matemáticas, literaturas…

A leitura me proporcionava um escape para um mundo de sonho e imaginação. O cinema somou-se à leitura, como uma outra paixão. Muito tímido, não fui dado a namoradas. O tempo não era suficiente para trabalhar de dia na feira livre, estudar à noite, ler desesperadamente em todo lugar e tempo vago, ir ao cinema três ou quatro vezes por semana e cultivar amores ou camaradas.

Fui chegando devagar e, não sei muito bem como, de repente, fazia parte daquele grupo. Eu fora, talvez, atraído pelo time de futebol ou pela mesa de ping-pong. Fui lateral direito do time de futebol. Joguei tenis de mesa relativamente bem.

É certo que o início da convivência deu-se em noites de férias escolares, que foram se prolongando em fins de semana dos idos de 1965 ou 1966. Sei que em 1966 já tinha sido eleito e fazia parte da diretoria de um grupo de 160 jovens pobres, a maioria deles filhos de trabalhadores do campo ou de operários.

Pode ser uma história banal, como todas. Me vi, de repente, agente e objeto de um movimento que não dominava. Começamos a fazer coisas. Fechamos o barracão aberto. Erguemos paredes. Construímos, de madeira, o palco. Costuramos e criamos os mecanismos de fechamento e abertura das cortinas. Mesmo sem reboco, pintamos as paredes. Enfeitamos a nossa casa.  Com pouco, tínhamos uma grande área de convivência. De repente, quase tínhamos um teatro.

O espaço livre do barracão, agora fechado, era suficiente para as mesas de ping-pong. As poucas cadeiras disponíveis eram bastante para acomodar os grupinhos, as nossas conversas e os casais de namorados que iam aumentando. Para o teatro, faltavam as acomodações de público.

Mas, a igreja, ali do lado, tinha grandes bancos de madeira. Transportá-los da igreja para o barracão só demandava braços fortes. Esses eram muitos. Era necessário também um acordo entre o horário da missa e do espetáculo. Para a maioria de nós isso é fácil. A gente sempre peca depois de rezar ou peca antes de rezar.

Houve um primeiro espetáculo, num sábado à noite. Não me lembro muito dele. Era uma peça teatral que envolvia romanos e troianos. Só me lembro de me sentir ridículo vestido de soldado romano. Foi o começo de um tempo cheio de espetáculos teatrais, de shows, de campeonatos, de matinês dançantes, de festas, de brincadeiras e, especialmente, de uma vivência grupal e democrática inesquecível.

Lembro de uma gincana musical, disputadas entre bairros, que mobilizou Rio Claro durante quase um ano. Lembro de participar da organização de uma festa junina que foi a maior que já tinha acontecido na cidade. Lembro de apresentar a peça Liberdade, Liberdade, para os moradores do bairro,  em cima de uma mesa de ping-pong. Lembro do comentário mais elogioso sobre o nosso trabalho: não sei como vocês decoraram tudo isso!

Enquanto isso, o país vivia uma ditadura. Não estávamos alienados disso. É verdade que, concretamente, a mudança de regime político não tinha afetado muito as nossas vidas. Mas, como os gatos dos Saltimbancos, já tínhamos nascidos livres.

 Küller

68 – Cenas

março 14, 2008

passeatas.jpgCENA 1 – O PASTOR DE PASSEATAJá encarnei o personagem “padre de passeata” vilipendiado pelo Nelson Rodrigues. Embora, já na época, eu achasse que passeata de padre era procissão. Como seminarista, participei de ambas. Mesmo achando a passeata mais perigosa.

 

Essa do pastor também foi interessante.

Devia ser em 66, numa passeata organizada pela UEE. A tática utilizada para despistar a repressão (pelo menos segundo dizia a liderança) era iniciar vários focos e depois juntar numa concentração no centro da cidade.

Participei da mini passeata que subiu a rua Catumbi(se não me engano) no Brás(ou na Móoca) que devia ser rápida, possibilitando a gente se encontrar no centro no tempo determinado.

O ponto de partida no centro era o da Galeria Prestes Maia, partindo depois pela São João, Ipiranga (não sei se o Caetano tava na esquina), atirando umas pedras no Estadão e terminando por queimar uma bandeira americana na Maria Antonia.

Chegando na Galeria, lá estava um desses pastores evangélicos de rua com a Bíblia na mão recrutando fiéis. Quando ele viu aquela moçada chegando em grande número e parando para ouvir seu sermão, ficou entusiasmado e melhorou a pregação.

Sua alegria só não foi maior que o susto que ele levou ao primeiro grito de “Abaixo a ditadura” – “Viva a UNE”- e as faixas e bandeiras sendo levantadas e a passeata saindo pelo Vale do Anhangabaú.

Às vezes fico pensando se ele não era o Edir Macedo em começo de carreira e a gente perdeu uma boa oportunidade de… deixa pra lá.

CENA 2- QUE DITADURA É ESSA?

Estou eu de novo numa passeata, pelos lados da São Francisco. Deve ter sido uma das primeiras e eu me sentia meio deslocado. Nunca fui de manifestações de massa e não me sinto à vontade para gritar e gesticular.

(Ainda ontem fui ver Corinthians e Rio Preto no estádio e fiquei curtindo 15 mil pessoas cantarem hinos e gritos (não mais) de guerra e não consegui nem gritar gol.) Voltemos ao eu deslocado na passeata.

O consolo é que ao meu lado tinha um cara mais deslocado que eu. No maior entusiasmo de neófito gritou:

“Abaixo a ditadura do proletariado!”

E foi imediatamente repreendido, pelo colega ao lado que devia ser seu iniciador: -“Não é isso seu burro.”

Ali já comecei a pensar que talvez o caminho não fosse esse.

CENA 3- SÍNDROME DO BOM SAMARITANO

A partir do Congresso da UEE em 65 em São Bernardo(em outro lugar eu disse Santo André, mas acho que me enganei) quando foi presa toda a diretoria e os presidentes dos Centros Acadêmicos participantes (inclusive o nosso) a participação dos seminaristas aumentou, e passamos a freqüentar as assembléias e organização de mobilizações.

Aí sobrou pra mim.
Não sei que iluminado sugeriu que para o próximo congresso da UEE deveríamos organizar um leilão de arte (tava na moda!) para arrecadar fundos.

Eu fiquei encarregado de conseguir patrocínios para a elaboração do cartaz e doação de obras nas galerias da rua Augusta. O cartaz seria impresso pela Michelangelo que estava no movimento, como se dizia na época.

Foi aí que descobri que não tinha mínimo jeito pra vender. Tanto que no período mais brabo do meu desemprego, logo a seguir nem pensei em me arriscar a ser vendedor de Barsa, que era o mais fácil.

O máximo que eu consegui foi fazer o fotolito para a impressão do cartaz, desenhado por um colega de seminário (o Valmar) que pra despistar a repressão desenhou uma cena do Bom Samaritano.

O que eu não entendo até hoje é que não consegui me livrar do fotolito. Levei pra casa, levei pro casamento, mudei 15 vezes de casa desde 71 e esse fotolito me acompanhou o tempo todo.

Só consegui me livrar dele no ano passado, porque o coloquei na janela da casa em que estava morando pra tapar o buraco de um vidro quebrado e a chuva apodreceu a madeira onde estava o fotolito. Criei coragem e joguei no lixo: 42 anos depois!
Ah! O leilão de arte não saiu.

CENA 4 – O GANCHO

E tinha os famosos comícios de porta de fábrica. Não me lembro muito bem deles, até porque foram poucos. E eu ficava na panfletagem, na porta e nos arredores.

Com o tempo, a repressão aumentando, começou ficar arriscada também a panfletagem.
Então surgiu a técnica do gancho: fazíamos um gancho com arame grosso; numa das pontas fixávamos os panfletos e a outra seria afixada em locais de grande concentração pública, como pontos de ônibus.

O que mais fazíamos era trem de subúrbio, especialmente os do ABC, que era onde – para nós – ficava o proletariado. Entravamos em uma estação; quando o trem estava parando na próxima, iniciava-se um pequeno discurso com o “abaixo a ditadura” no final; aí pendurávamos o gancho na alça e saíamos no meio da multidão. Como faziam os vendedores de chicletes e balas.

Mesmo que não fosse eficaz, era bastante poético.

CENA 5 – A PRIMEIRA CALCINHA A GENTE NÃO ESQUECE!

Deve ter sido ainda em 1965. No teatro Paramount, um show para arrecadar fundos para as famílias dos prisioneiros políticos. Ainda podia.

O pessoal dizia que foi organizado pelo partidão. Vários atores, músicos e cantores se apresentaram. Lembro do Valmor Chagas contracenando um trecho de peça com a (não tenho certeza) Cacilda Becker, lembro do Caetano e o Gil ainda não famosos, do Vandré… e não consigo lembrar mais ninguém. E tinha muita gente.

Mas me não esqueço, nos meus vinte anos celibatários, da menina que foi tocar violão, com a saia que já era quase mini, e ao cruzar as pernas deixou aparecer a calcinha.
Vai entender a memória da gente! Com tanta gente importante naquele dia, e vou me lembrar da…

Ah! Era branca.

CENA 6 – MON BIJOU (clique aqui para ver a página 10)

Jarbas, essa é pra fazer contraponto com a galeria Metrópole.
O meu ponto de cinema (vai ser enjoado!) favorito era o Cine Bijou, ali na praça Roosevelt. Será que ainda existe?

Era uma sala aconchegante, com poucos lugares: na minha imaginação tinha no máximo 60 lugares. Ali passavam os chamados filmes de arte e os brasileiros não-comerciais. Lembro de ter visto vários Bergman, Fellini, Antonioni, De Sicca, os Franceses, Barravento do Glauber; O Caso dos Irmãos Naves; O Desafio, do Sarraceni, São Paulo S.A. e muitos outros.

Cabulei muita aula de teologia por causa dele.

Eduardo Sposito

Velhos rádios

março 13, 2008

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Lembro-me com uma certa dose de nostalgia de um velho rádio que tinha lá em casa durante os “anos de chumbo” que no meu modo de ver começam em 64 com o Golpe de Estado, recrudescem em 69, com o AI-5 e transbordam para a década de 70, e de uma certa forma por toda a Ditadura.

O velho rádio de válvulas, que levava um tempinho para aquecer e começar a “falar” se tornou uma espécie de “buraco” por onde entrava um pouco de informação real sobre o Brasil quando a nossa imprensa estava totalmente censurada, chegando ao ponto de o velho Estadão, jornal conservador que no primeiro momento apoiou o Golpe, publicar poemas e receitas de bolo para na primeira página e na parte editorial, para preencherem o espaço deixado por matérias censuradas de última hora pelo censor da Ditadura, com seu pincel atômico vermelho, plantado nas redações.

A rádio BBC de Londres, nesses tempos, mantinha transmissões em português, com uma equipe brasileira de grandes repórteres e jornalistas, uma boa parte deles, claro, exilados. Lembro-me até hoje que o noticiário ia ao ar as 19 horas, hora brasileira, justamente o horário da Voz do Brasil.

Ali, naquele velho rádio valvulado, mas de uma eficiência assombrosa em ondas curtas, ouvíamos notícias que não circulavam por aqui furando a teia de silêncio imposta pelos órgãos de censura do Governo, criando uma espécie de circuito alternativo que passava de boca em boca. Nossa esperança de que o Brasil saísse dessa longa noite que se abateu sobre nós, era aquecida por velhos rádios espalhados pelo país afora. Veja as páginas: 8. A BBC de Londres e a Ditadura e 9. Um homem chamado Canuto e o rádio

1964…e a vida continua.

março 11, 2008

Da Reunião Pedagógica, ocorrida naquele mês de abril, uma sombria conclusão: a maioria esmagadora dos professores  – participavam das Reuniões Pedagógicas mensais todos os professores das escolas rurais do município de Registro – era absoluta e inquestionavelmente a favor da revolução e ao me posicionar contra, em minha ingenuidade tola,  perdi uma ótima oportunidade de ficar com a boca fechada.

Para mim o que salvou daquela reunião – que aumentou, e muito, minha tristeza e desesperança – foi o encontro e o início de amizade com dois professores mais experientes; eram dois educados rapazes da região de Amparo: um mais novo, o Luís, que ao saber de minha paixão por jogar futebol me convidou – aceitei na hora – para treinar com o time de Registro;  o outro, mais velho, o Fausto,  era filho de um diretor de grupo que lhe encaminhava mensalmente – retirados da biblioteca municipal de sua cidade – bons livros, os quais, gentilmente me foram oferecidos, com a promessa de, a cada reunião, ou encontro, devolvê-los: também aceitei na hora. Obtive, também naquela  reunião, a autorização formal para “instalar” o curso de alfabetização de adultos.

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Havia na região muitos nordestinos que vinham à busca de trabalho nas lavouras de banana: carpiam, colhiam as frutas  e se responsabilizavam pela árdua tarefa de carregá-las até os barcos ou caminhões para serem vendidas em São Paulo.Um deles, o Reinaldo, se tornou um grande amigo: alto, forte, negro, com os lábios grossos e os dentes, infinitamente brancos, sempre à mostra em seu sorriso permanente. Em uma tarde foi até a escola e pediu para que eu lesse, para ele,  a carta que o mestre da Lancha Sete havia lhe deixado na manhã daquele dia; carta de Rosília, sua namorada desde os tempos em que morava no interior de Alagoas.

Li a carinhosa carta de sua amada e vem o pedido:

– “Me ajuda a responder?”

– “Claro…a hora que você quiser.”

– “Então amanhã…trago papel e envelope.”

Na tarde seguinte, após o jantar, sob a luz de uma lamparina fomos à resposta que, segundo Reinaldo, deveria começar assim: “Espero que estas mal traçadas linhas vá te encontrar gozando de perfeita saúde junto aos seus…”; pediu para,  entre as muitas lembranças para fulano e beltrano, escrever que a veria em breve nas festas juninas,  que estava guardando dinheiro e que queria muito casar com ela – sua doce Rosília.

– “Não vai mandar um beijo no fim da carta?”

– “Pode? E se o pai dela ficar sabendo? O velho é danado de bravo.”

– “Ele sabe ler?”

– “Não. Ele não sabe, lá só a Rosília sabe”

– “Então pode.”

Termino a carta com um beijo, e ele : – “Termina assim professor: mais de cem doces beijos, meu amor.”

A fama correu a região: mais cartas foram lidas e respondidas; às vezes me sentia um pouco envergonhado por ler e escrever segredos – muitos tão íntimos – dos amigos nordestinos.

Daí ao convite: não querem aprender a ler?

Todos quiseram

.…………………………………………………………………………………………………………. Em Ribeirão Preto eu  havia participado, com o pessoal da JOC – no Círculo Operário – de uma experiência bem sucedida de alfabetização de adultos utilizando o método Paulo Freire, o que me levou a pensar  que poderia repetir, com os amigos nordestinos, a experiência realizada com os operários da Matarazo.Por isso estranhei um pouco quando, junto com os livros oficiais de autorização para a abertura do curso de alfabetização de adultos, o Inspetor de Ensino ofereceu quinze cartilhas “Caminho Suave”. Pelo clima da reunião achei por bem aceitá-las, agradecer e não discutir.

Na escola combinamos, com os treze alunos, que o curso seria das sete às nove da noite e com isso acabou-se a Hora do Brasil e os chiados de meu radinho de pilha…Ricardo, um dos alunos, pernambucano baixo e forte como um touro,  conseguiu com o Senhor Shindio, sitiante com o qual trabalhava, uma lamparina a gás que clareava fortemente a sala de aula e deixava, na saída dos alunos, minha pequena lamparina a querosene envergonhada com sua tão pouca luminosidade; nos reuníamos de segunda a sexta e eu misturava às “palavras geradoras”  – “chiboca”, “banana”, “covo” –  outras com a “pata nada” da Caminho Suave; a rapidez com que o rapazes aprendiam era impressionante.

Era muito divertido, o clima ameno e cooperativo: ríamos muito e quase sempre pedíamos para o Ariovaldo, ao fim da aula, cantar seus embolados engraçados e inteligentíssimos: cantávamos cada qual uma palavra e lá vinham , rapidamente, os versos de Ariovaldo rimando:  “banana” com sacana, “revolução” com bicho papão…e assim infinitamente; uma noite resolvi desafiá-lo com “psicologia”: rapidíssimo, vem nostalgia; vencia a todos, o Ariovaldo.  

No início de junho, ao final de uma aula vem a notícia, trazida pelo “líder”  Reinaldo: as aulas teriam que acabar naquela sexta-feira  porque iriam para o norte participar das festas juninas…

– “Mas as férias são em julho, e ainda estamos em junho”,  argumentei.

– “Bem professor…é que as festas juninas são agora e temos que ir…”   

Foram; em agosto, como haviam prometido, retornaram. ……………………………………………………………………………

E assim, em 1964, a vida continuou naqueles ermos da  Lagoa Nova!

Tudo muito quieto!

Do burburinho de Ribeirão Preto, das constantes e longas conversas com pessoas com as quais comungava idéias, ideais, lutas e utopias ao silêncio – tão valorizado pelos cistercienses – tão mudo como as águas quase paradas do Ribeira de Iguape.  

Bonequinhos do 9

março 10, 2008

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Quem morou em São Paulo na primeira metade dos anos sessenta certamente se lembra das chamadas do canal 9, a TV Excelsior. Fala-se quase sempre na importância da Tupi e da Record. Mas muita inovação televisiva surgiu no canal 9, uma emissora local numa época em que redes de televisão ainda eram um ensaio. Eu achava que os famosos e saudosos bonequinhos do 9 ficaram apenas em nossas lembranças enevoadas de quarenta ou mais anos. Mas descobri que no formidável auxílio de memória, ou expressão de memória coletiva como querem alguns, chamado Web, há diversos registros daqueles bonequinhos que apresentavam de modo charmoso e original o canal 9. Muitos filmetes com chamadas da Excelsior podem ser encontrados no Youtube. Se quiserem dar uma olhada, comecem por este aqui.