22. A consolidação do estado autoritário

In: ARNS, P. E. (org.). Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, Vozes, 1985, p. 60-64

A ruptura de abril de 1964 resultou no arquivamento das propostas nacionalistas de desenvolvimento através das Reformas de Base. A partir daí, foi implantado um modelo econômico que, alterado periodicamente em questões de importância secundária, revelou uma essência que pode ser resumida em duas frases: concentração da renda e desnacionalização da economia.

A índole concentradora do modelo pode ser aferida a partir de diversos indicadores: política salarial, política tributária, política fundiária, política de investimentos, etc. A desnacionalização implicou na abertura de todas as portas para o capital estrangeiro: estímulo creditício e fiscal para implantação de multinacionais no Brasil, facilitação da remessa de lucros e vistas grossas diante de fraudes para burlar os controles legais, permissão para compra de terras por grupos estrangeiros, e endividamento externo.

A monopolização da economia e a imposição de um modelo concentrador de renda e achatador de salários foram as raízes, no campo econômico, de toda uma série de medidas autoritárias e repressivas que os governos adotariam a partir de 1964.

A política de salários introduzida procurava, acima de tudo, propiciar condições atraentes para os investidores estrangeiros e rentabilidade para o grande capital nacional. O achatamento salarial observado nos anos do Regime Militar não teve precedentes da história do país e funcionou como viga-mestra do crescimento capitalista vivido nos anos do passageiro “milagre brasileiro”. Esse arrocho foi, ao mesmo tempo, o principal responsável pela forte deterioração das condições de vida do povo brasileiro: fome, favelas, enfermidades, marginalidade, avançaram em números expressivos.

Para a aplicação desse modelo econômico, foi necessário alterar a estrutura jurídica do país, reforçar o aparato de repressão e controle, modificar radicalmente o sistema de relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Em outras palavras: foi necessário montar um Estado cada vez mais forte, apesar de se manterem alguns disfarces da normalidade democrática.

No momento mesmo da deposição de Goulart, procurou-se apresentar a sucessão não como o que ela foi de fato – a derrubada de um mandatário eleito pelo povo e sua substituição por um general indicado pelas Forças Armadas e sim como uma “eleição indireta”, levada a cabo pelo Legislativo.

O Ato Institucional de 9 de abril, que deveria ser único e acabou sendo o primeiro de uma série, editado seis dias antes da posse do general Castello Branco, deixou bem claro: “A Revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma”. Quando se encerrou, a 11 de junho de 1964, o prazo que o primeiro Ato havia estabelecido para as cassações, o balanço inicial foi de 378 atingidos: três ex-presidentes da República (Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart); seis governadores de Estado; dois senadores; 63 deputados federais e mais de três centenas de deputados estaduais e vereadores. Foram reformados compulsoriamente 77 oficiais do Exército, 14 da Marinha e 31 da Aeronáutica. Aproximadamente dez mil funcionários públicos foram demitidos e abriram-se cinco mil investigações, atingindo mais de 40 mil pessoas. Castello Branco criou a Comissão Geral de Investigações (CGI) para coordenar as atividades dos inquéritos policiais militares, que começavam a ser instaurados em todo o país. Foi implantado, em junho, o Serviço Nacional de Informações, cujo poder misterioso cresceria sem interrupção nos anos seguintes.

A ditadura foi tomando corpo. Ao ser derrotado nas eleições estaduais em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, o governo edita o Ato Institucional nº 2, em outubro de 1965, que acaba com todos os partidos políticos e permite ao Executivo fechar o Congresso Nacional quando bem entender; torna indiretas as eleições para presidente da República e estende aos civis a abrangência da Justiça Militar. “Não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará”, afirma-se na introdução do AI-2.

Na prática, só poderão existir, daí para a frente, dois partidos políticos: um governista e outro da oposição consentida. São criados a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), este último encarregado de fazer oposição, mas sem contestar o regime. Pelo Ato Institucional nº 3, de fevereiro de 1966, também as eleições para governadores dos Estados são tornadas indiretas.

O ano de 1966 transcorre marcado por disputa nos quartéis – agora transformados no Colégio Eleitoral de fato – em torno da sucessão de Castello Branco. Vence a chamada “linha dura”, com o nome do general Costa e Silva, ministro da Guerra, que será facilmente referendado por um Congresso que, no mesmo ano, sofre mais seis cassações, nova decretação de recesso e cerco por tropas militares. Com a posse de Costa e Silva, em março de 1967, o Brasil ganha uma nova Constituição, uma nova Lei de Segurança Nacional e uma Lei de Imprensa, que chega a estabelecer a infalibilidade do presidente da República e de alguns altos mandatários do regime.

Devagar a oposição ao regime vai readquirindo força no âmbito das ruas, das fábricas e das escolas, apesar de toda a repressão. Em março de 1968, no Rio, a polícia intervém contra uma manifestação de estudantes e mata o secundarista Edson Luís, de 18 anos. Como um rastilho de pólvora, espalha-se por todo o país manifestações públicas de protesto. Também as lutas operárias ressurgem com alguma vitalidade. Crescem o enfrentamento e as denúncias contra o Regime Militar, tendo as classes médias urbanas ocupado a frente das movimentações.

Os três fatores utilizados como pretexto pelas Forças Armadas, para desencadearem nova escalada repressiva com o Ato Institucional nº 5, foram: as denúncias sustentadas dentro do próprio partido de oposição criado pelo regime, o crescimento das manifestações de rua e o surgimento de grupos de oposição armada, que justificavam sua decisão com o argumento de que os canais institucionais seriam incapazes de fazer frente ao poder ditatorial.

Costa e Silva baixa o AI-5 no dia 13 de dezembro de 1968. A gota d’água foi um discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves, considerado ofensivo às Forças Armadas. Ao contrário dos atos anteriores, no entanto, o AI-5 não vinha com vigência de prazo. Era a ditadura sem disfarces. O Congresso é colocado em recesso, assim como seis assembléias legislativas estaduais e dezenas de câmaras de vereadores em todo o país. Mais 69 parlamentares são cassados, assim como o ex-governador carioca Carlos Lacerda, que fora um dos três principais articuladores civis do golpe militar, ao lado do ex-governador paulista Adhemar de Barros, já cassado antes, em 1966, e do governante mineiro Magalhães Pinto, que sobreviveu às punições.

O resultado de todo esse arsenal de Atos, decretos, cassações e proibições foi a paralisação quase completa do movimento popular de denúncia, resistência e reivindicação, restando praticamente uma única forma de oposição: a clandestina.

Em agosto de 1969, ocorre o episódio obscuro da enfermidade que afastou Costa e Silva da presidência e ensejou um “Golpe Branco” desfechado pelos três ministros militares ao impedirem a posse do vice-presidente civil, Pedro Aleixo.

Constata-se um círculo vicioso: a resistência armada intensifica suas ações e parte para os seqüestros, exigindo em troca a libertação de presos políticos; a Junta Militar, por sua vez, adota as penas de morte e banimento, tornando mais duras as punições previstas na Lei de Segurança Nacional (Decreto-lei 898), além de outorgar uma Constituição mais autoritária, que é batizada de Emenda Constitucional nº. 1.

O Congresso Nacional é reaberto apenas para referendar o nome do general Emílio Garrastazzu Médici, indicado para a presidência da República, após uma luta surda nos quartéis.

Sob o lema “Segurança e Desenvolvimento”, Médici dá início, em 30 de outubro de 1969, ao governo que representará o período mais absoluto de repressão, violência e supressão das liberdades civis de nossa história republicana. Desenvolve-se um aparato de órgãos de segurança, com características de poder autônomo, que levará aos cárceres políticos milhares de cidadãos, transformando a tortura e o assassinato numa rotina.

De outro lado, o país vive a fase do “milagre econômico”, dos projetos de impacto e das obras faraônicas, como a ponte Rio – Niterói e a rodovia Transamazônica, num clima de ufanismo insuflado pela propaganda oficial, com a imprensa amordaçada pela censura. A inoperância da atividade partidária legal traz como resultado, o desinteresse popular pelas eleições que ocorrem no período. Nas eleições de novembro de 1970 para a renovação do Congresso Nacional, por exemplo, a soma das abstenções, votos brancos e nulos atingem a 46% do total de eleitores inscritos.

Até o final do mandato de Médici, seguirá crescendo a imagem do Brasil no Exterior como país de torturas, perseguições, exílios e cassações.

 A Igreja, que apoiara a deposição de João Goulart, passa por profundas transformações e começa a enfrentar dificuldades crescentes nas suas relações com o Estado, tornando-se também vítima dos atos repressivos: há prisões de sacerdotes e freiras, torturas, assassinato, cerco a conventos, invasões de templos, vigilância contra bispos.

Os órgãos de segurança, sem respeitar limites da dignidade da pessoa humana, conseguem importantes vitórias na luta contra as organizações de luta política clandestina. Todos os resultados colhidos na pesquisa BNM confirmam as denúncias formuladas no período Médici, por entidades de Direitos Humanos, a respeito de torturas, assassinatos de opositores políticos, desaparecimentos, invasões de domicílio, completo desrespeito aos direitos do cidadão e inobservância da própria legislação criada pelo regime. É nesse período que a pesquisa constatou os mais elevados índices de torturas, condenações e mortes.

O segundo semestre de 1973 começou a mostrar sinais da falência do “milagre” – quadro que seria agravado com a eclosão da crise do petróleo. Os quartéis escolhem então o general Ernesto Geisel para dar início a uma nova etapa do Regime Militar. Desta vez, o estilo é outro, na tentativa de recuperar a legitimidade que desaparecera por completo no último período.

Nos seus cinco anos de mandato, Geisel aplica uma política que tem como linha básica a revigoração do prestígio do regime, a reativação da vida partidária, a reabertura do diálogo com setores marginalizados das elites e a contenção da dinâmica oposicionista dentro de limites que não ameaçassem a chamada Segurança Nacional. Haverá repressão, sim, e dura, mas temperada com medidas de abertura, mesclada com gestos de abrandamento, tudo visando, em última instância, a manutenção do sistema instaurado em 1964.

 Será um governo de gestos pendulares, precisamente calculados, abrindo num momento, para em seguida retomar medidas repressivas, que marcassem, claramente, o limite, restrito, da abertura controlada. Procurando canalizar para o Parlamento e os partidos oficiais todo o descontentamento popular que crescia, os generais Geisel e Golbery do Couto e Silva, principais formuladores da política de distensão, definiram também um abrandamento relativo da censura à imprensa.

Como resultado destes primeiros sopros liberalizantes, 13 das 22 vagas disputadas no Senado nas eleições de novembro de 1974 foram conquistadas pela oposição; na Câmara Federal, o MDB passou de 87 para 165 cadeiras e a Arena, o partido oficial, regrediu de 223 para 199. Os militares encontraram dificuldades para digerir a derrota, mas respeitam os resultados num primeiro momento, alterando a dinâmica eleitoral dos anos seguintes com medidas que viciavam as regras do jogo.

2 Respostas to “22. A consolidação do estado autoritário”

  1. raimunda Says:

    isso é uma bobice

  2. Antonio Morales Says:

    Raimunda…o que exatamente é uma “bobice”?

Deixe um comentário