43-Plinio Marcos-Assim é, se lhe parece

Assim é, se lhe parece(A título de prefácio)

Topei com o Plinio Marcos em meados de 1988. Eu era coordenador-geral de Comunicação e Marketing da Nossa Caixa-Nosso Banco e estávamos desenvolvendo um projeto cultural na área de Teatro, o “Arte em Cena”. Tratava-se do patrocínio anual de uma montagem teatral que era mostrada durante um mês na Capital e depois percorria cerca de 35 cidades do Interior do Estado, em mais três meses.

Eu dividia com o Paulo Drummond, ator e diretor, a supervisão do projeto e havíamos chegado à conclusão de que deveríamos, para consolidá-lo, partir do princípio de que ele teria que ser respeitado e amado, para começar, pela própria gente do Teatro.

Para atingir esse objetivo específico, adotamos uma estratégia de envolvimento da gente de Teatro no projeto, por meio da multiplicação de iniciativas de apoio financeiro e material a uma série de atividades relacionadas com o fazer teatral, especialmente a divulgação dos espetáculos em cartaz. Patrocinávamos “tijolinhos”, imprimíamos programas e cartazes na gráfica do banco, recebíamos sem formalidades e conversávamos franca e demoradamente com qualquer pessoa de Teatro que tivesse um projeto a nos oferecer. É óbvio que não tínhamos condições de atender a todos os pedidos. Mas tentávamos passar a todos que nos procuravam, pelo menos, uma certeza: a Nossa Caixa era amiga do Teatro.

Naquela altura do ano de 1988 nossa avaliação era de que o projeto ia muito bem. Excursionávamos pelo Interior paulista com Até onde a vista alcança, produção do grupo Lux in tenebris com texto e direção de Reinaldo Santiago. Mas não estávamos completamente satisfeitos.

A diretoria do banco havia mudado no primeiro semestre, quando a edição 88 do projeto já estava em execução. O presidente Flávio Chaves, que havia dado total apoio à idéia, demitira-se. O empresário Nildo Masini, novo presidente do banco, era aparentemente simpático ao projeto. Mas isso talvez não fosse suficiente – como se verificou menos de dois anos depois – para garantir a continuidade do “Arte em Cena”.

Nossa preocupação, portanto, era encontrar um meio de garantir o apoio da nova diretoria ao “Arte em Cena/89”, que já estava todo planejado e prometia ser um sucesso ainda maior.

Para fazer a cabeça dos novos diretores do banco, acabou pesando decisivamente uma análise de clipping que nos era fornecida por uma empresa especializada e que demonstrava, com a frieza dos números que os banqueiros apreciam, que o noticiário positivo gerado pelo “Arte em Cena” havia conseguido praticamente neutralizar os efeitos negativos para a imagem do banco que o então recentíssimo “escândalo da raspadinha” havia provocado. Era praticamente um milagre!

Decidimos então, fazer a festa completa. Programamos para o encerramento da temporada de 88, em setembro, um grande evento no Teatro Sergio Cardoso, no qual faríamos a última apresentação de

Até onde a vista alcança sob o patrocínio da Nossa Caixa, mas que teria como ponto alto uma homenagem do “Arte em Cena” ao Teatro, personalizado em alguém unanimemente reconhecido como uma grande expressão do meio teatral.

O escolhido acabou sendo Plínio Marcos, que a essa altura já estava envolvido conosco. Procurando atrai-lo – trata-se de um grande multiplicador de opinião! – eu havia me apresentado a ele numa madrugada de julho, no restaurante Gigetto, e convidara-o a nos fazer uma visita para discutirmos uma maneira de ele colaborar com o “Arte em Cena”.

Dias depois, o Plínio apareceu em meu gabinete na sede do banco e entrou no assunto de sola, como é de seu feitio:

– É o seguinte: se você está mesmo a fim de trabalharmos juntos, a melhor maneira é descolar uma grana. Afinal, isto aqui é um banco, não é? Tenho três propostas e você pode escolher qualquer uma, ou todas que eu não vou ficar triste. Primeira: vocês imprimem de graça aí na sua gráfica alguns desses meus livrinhos que eu vendo por aí. Segunda: vocês patrocinam um show meu, uma peça, qualquer coisa. Patrocínio completo. Terceira: a única coisa que eu possuo, o único bem que tenho, são os meus textos; então, eu penhoro um texto meu aqui, por uma grana que a gente combina. Pode ter certeza de que vai ter a maior repercussão legal na Imprensa.

E foi-se embora, deixando comigo uma coleção de seus “livrinhos”.
Ao ver aquela figura singular saindo da sala, eu não sabia se permanecia perplexo ou continuava fascinado. Penhorar, colocar “no prego” uma peça de Teatro! Que idéia genialmente maluca! A assessoria jurídica do banco teria espasmos de ódio e certamente gastaria resmas de papel para provar o aparentemente óbvio: era uma idéia absurda. Mas deveria haver uma maneira de viabilizar aquela irresistível doidice. Que fantástico lance promocional para o banco!

Havia só um pequenino problema: a Nossa Caixa não tinha carteira de penhor. Quem tem é a Federal. Por aí, portanto, nada feito.
Patrocinar um show ou uma peça também não dava. Afinal, patrocínio era o próprio negócio do “Arte em Cena” e aí a coisa esbarrava em concorrência, regulamente, etc.

Imprimir uns “livrinhos” também não me pareceu uma boa idéia. Só em pensar, por exemplo, numa edição de Mancha roxa com a logomarca do banco impressa na capa… Melhor não!

Mas, entre os “livrinhos” que o Plínio havia me dado, encontrei, naquele intitulado Canções e reflexões de um palhaço, o pequeno texto “O ator”. Exatas 70 linhas de uma vigorosa e ao mesmo tempo singela e comovedora declaração de amor ao ator, que termina assim: “Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que é por eles que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha que se valer da técnica mecânica”.

Estava ali! Era exatamente o que procurávamos. Num estalo, toda a idéia surgiu pronta, clara, em nossas cabeças: fazemos um belo poster com o texto de “O ator” mais a foto e a assinatura do Plínio; distribuímos esse poster entre a gente de Teatro, como um presente do banco; por conta dos direitos autorais, “descolamos” a grana. E mais: o Plínio será o grande homenageado na festa do “Arte em Cena”, na qual “O ator” será lido, melhor ainda, interpretado por um grande nome do palco.

Chamei o Plínio para lhe expor a idéia. Como estava na cara que ele ia concordar, eu já encomendara a criação do cartaz com o texto, a foto e a assinatura, as duas últimas gentilmente fornecidas pelo Emílio Fontana. Ficou ótimo. Providenciei uma prova e antes de o Plínio chegar deixei-a tentadoramente semi-enrolada sobre a mesa da sala de reuniões. Quando ele foi anunciado, pedi à secretária que o introduzisse na tal sala e dei um tempo antes de entrar. Abri silenciosamente a porta por detrás dele e observei-o por algum tempo.

Curvado sobre a mesa, tendo nas mãos o poster desenrolado, ele estava visivelmente surpreso. E, tenho certeza, emocionado.

Quando afinal entrei, ele imediatamente reassumiu seu papel predileto.

E declarou – numa alusão ao fato de a Nossa Caixa ser um banco oficial -, afetando um tom de deboche que mal disfarçava sua satisfação:
– O governo já me fez de tudo, principalmente me censurar e mandar prender. Mas é a primeira vez que ele me presta uma homenagem!

Então ele se deve ter dado conta de que estava traindo a emoção e calou-se. Igualmente emocionado, também fiquei sem saber o que dizer.

Permanecemos algum tempo ali no meio da sala, parados, meio sem jeito, olhando em silêncio para o poster. Não me lembro de quem tomou a iniciativa de retomar a conversa. Provavelmente foi ele. Mas sinto que aqueles segundos de eloqüente mudez inauguraram uma relação mútua de respeito e afeto.

Começou então a “negociação”. Propus adquirir os direitos autorais do texto para o fim específico de reproduzi-lo num cartaz promocional, do qual parte da tiragem seria cedida ao autor, o senhor Plínio Marcos de Barros, que desse material poderia dispor da maneira que melhor lhe aprouvesse, provavelmente vendendo-o no varejo junto com seus famosos “livrinhos”, que foi o que evidentemente aconteceu. E a outra parte, maior, da tiragem de não me lembro mais quantos posters, a Nossa Caixa usaria para distribuir como brinde, a seu exclusivo critério.

Pela cessão desses direitos a Nossa Caixa pagaria ao autor, em moeda corrente e à vista, a quantia de…
– Plínio, quanto é que você quer pelo texto?
– Sei lá… Diz aí quanto tu quer pagar.
– Eu também não sei, Plínio. É uma coisa muito relativa. Acho que a melhor maneira de a gente se entender é você dar seu preço e eu avaliar se posso pagar ou não. Se você…
– Tá bom, ta bom! É o seguinte: o meu filho Kiko está aprendendo clarinete, ele é bom paca, e o professor falou que o clarinete que ele está usando é uma merda, precisa outro melhor. Quero dar um clarinete novo pro Kiko.
– E quanto custa?
– Acho que uns trezentos paus.
– Está bem. Fechamos então por trezentos?
– Falou.

Hoje não sei dizer exatamente quanto valiam trezentos mil cruzeiros (era cruzeiro mesmo?) em meados de 1988. Só sei que não era muito. Era menos que meu salário. Não sei se daria para comprar um clarinete novo. Mas o fato é que cheguei à conclusão de que, afinal, estávamos pagando pouco, mesmo considerando que ele teria algumas centenas de cartazes para vender. E acabei concluindo também que, definitivamente, o negócio do senhor Plínio Marcos não era mesmo dinheiro.

Poucas semanas depois, na Bienal do Livro, no Ibirapuera, encontro meu novo amigo postado num daqueles corredores apinhados de gente, vendendo seus “livrinhos”… e os cartazes. Achei que era uma boa ocasião para lhe contar a grande novidade: durante a festa no Teatro Sergio Cardoso, dali a alguns dias, o texto sobre o ator seria interpretado pela Irene Ravache. Dois dias antes ela aceitara pronta e alegremente participar da homenagem.

O Plínio recebeu a notícia com aparente naturalidade. Batemos um papinho e segui em frente. Alguns minutos depois, voltando pelo mesmo corredor, fui chamado por ele:
– Olha aqui. Eu acho a Irene uma puta atriz. Seria uma honra ela ler o meu texto. Mas não está certo, porra! Quem tem que ler esse texto é a Walderez, a maior e mais injustiçada atriz deste País. Tem que ser ela e mais ninguém.

Meu sangue gelou. E agora? Sem considerar que em termos de prestígio para o evento o nome da Irene era muito mais significativo, eu não via a menor graça em ter que explicar para ela que ficava o dito pelo não dito.

Afastei-me sem dizer nada conclusivo e perambulei pelos corredores da Bienal do Livro maldizendo a hora em que tivera a infeliz idéia de me meter com gente tão doida. Fiquei de tal modo desorientado que acabei me perdendo de minha mulher e minha filha, que tiveram que voltar para casa de taxi.

Eu conhecera a Walderez de Barros, ex-mulher do Plínio, pouco tempo antes. Ela estava fazendo Lago 21 no Teatro Procópio Ferreira, então do Jorge Takla, sob a direção do próprio e com o Elias Andreato e a Mariana Muniz no elenco. Era um espetáculo belíssimo, fragmentos de textos de Tchecov e de Shakespeare, montado nos fundos do enorme palco, onde fora improvisada uma plateiazinha para 50 pessoas. Lago 21 era apresentado no chamado horário alternativo, às segundas e terças-feiras, exatamente atrás do cenário de O mistério de Irma Vap, com Marco Nanini e Ney Latorraca, que já estava em cartaz havia algum tempo, faturando, faturando…

Por aqueles dias, a Walderez estava comemorando 25 anos de carreira. Alguns amigos dela, como a Etty Frazer, haviam organizado uma festinha de comemoração no teatro mesmo, depois do espetáculo. E para essa apresentação especial, o Plínio estava vendendo ingressos também especiais, muito mais caros, dos quais me impingiu dez. Eu estava com minha mulher e durante a festinha ele nos apresentou à Walderez, de quem estava separado havia uns quatro anos. É uma grande atriz e uma pessoa excepcional. Acabamos nos tornando bons amigos porque no ano seguinte ela participou do elenco da peça vencedora da concorrência para o “Arte em Cena” – Nossa Cidade, de Thornton Wilde, com o Grupo Tapa, sob a direção de Eduardo Tolentino de Araújo.É uma das belas amizades que o Teatro me proporcionou.

Mas, voltando aos corredores entupidos de gente da Bienal do Livro, lá estava eu às voltas com a sinuca de bico em que me havia metido quando, de repente, me dei conta de que o problema, na verdade, não existia. Como é que eu não atinara antes com uma coisa tão óbvia? Voltei correndo ao Plínio:
– Estive pensando no que você me disse sobre a Walderez. Acho que você tem razão. A presença dela daria até um sentido especial à homenagem. Mas tem um problema: a festa está marcada para terça-feira, não dá mais para mudar. E, infelizmente, a Walderez tem espetáculo. Como é que a gente faz?
– É mesmo, não vai dar. Mas a Irene é uma puta atriz. Vai ser uma honra ela ler meu texto.

Chegou finalmente a noite de 26 de setembro de 1988, terça-feira. O Teatro Sérgio Cardoso estava lotado com nossos convidados, majoritariamente gente de Teatro. A apresentação, dirigida pelo Paulo Drummond, começava com uma homenagem póstuma a Miroel Silveira, que morrera poucos meses antes e fora, por assim dizer, o inspirador do “Arte em Cena”, na medida em que, um ano e meio antes, nos vendera a idéia de patrocinar a primeira montagem – Romaria, texto de sua autoria – que acabou se tornando o embrião do projeto. A homenagem consistiu na apresentação da última cena de Romaria, protagonizada por Cleo Ventura e Luiz Serra, sob a direção de Emílio Fontana, com Inezita Barroso puxando o coro da apoteose. Em seguida, todo o elenco de 16 pessoas permaneceu no palco, a equipe técnica se juntou a ele e todos acompanharam Renato Teixeira cantando “Romaria”, enquanto descia um grande painel com a imagem do Miroel, pintado pelo Elifas Andreato.

Um telão, colocado no alto, no meio do palco, exibia cenas que ilustravam o roteiro do evento, intercalando-as com imagens ao vivo do que estava rolando no especo cênico e na platéia.
Seguiram-se os preitos a Rolando Boldrin, que também participara do projeto aquele ano apresentando no Interior, num roteiro paralelo, seu espetáculo Paia…assada. E ao grupo Lux in Tenebris, responsável por Até onde…representado pelo autor e diretor Reinaldo Santiago. E dá-lhe homenagem, que tudo era festa! Quase uma maratona!

Chegou então a vez do Plínio. O mestre de cerimônia, Mario Lima, anunciou Irene Ravache, que entrou no palco elegante, linda e – vá-se entender! – ostensivamente nervosa, sob uma calorosa ovação, para ler – ela não tivera tempo de decorar – as 70 linhas de “O ator”.
Sua voz clara e marcante soava às vezes embargada, o papel tremia ligeiramente em suas mãos. Mas, com o talento que fez dela uma das maiores atrizes brasileiras, transmitiu a uma platéia eletrizada a emoção de cada frase, a intenção de cada palavra. Ao final, foi um delírio! O Plínio tem razão. É uma… senhora atriz!
Quando o público finalmente se cansou de aplaudir a Irene, foi chamado ao palco o grande homenageado da noite, gloriosamente personificando o Teatro.

Eis então que surge a figura, no seu mais esmerado figurino pour épater lês bourgeois: calça preta de sarja, presa por elástico abaixo do protuberante ventre e displicentemente enroladinha na altura dos tornozelos sem meia;camiseta remotamente também preta, num dégradé de tons pardos, com aplicação de um buraco de uns três centímetros de diâmetro na altura do ombro direito; elegante chapeuzinho de pano também preto – afinal, tratava-se de um evento de gala! -; bolsa de pano porta-“livrinho” a tiracolo e, detalhe final, confortável sandália-de-dedo.

Estabelecia o roteiro que, tão logo cessassem os aplausos ao Plínio, seria também chamado ao palco aquele que iria prestar a homenagem, fazendo a entrega do inevitável cartão de prata: o presidente da Nossa Caixa, Nildo Masini. O dono da festa. Mas não deu tempo…

Tão logo se desvencilhou de um comovido abraço da Irene, o grande homenageado da noite engatou um acalorado discurso no qual, com o brilho retórico que lhe é peculiar, enalteceu a figura do Ator, fez várias piadas sobre o seu relacionamento com o banco e comigo – “Aí me disseram: vai lá na Caixa e fala com os caras. Bota um sapato e vai lá, que eles estão soltando a grana”; “Quando fui acertar o dinheiro – santa mentira! – contei que o clarinete do Kiko custava trezentos paus. Só custava cem…” E depois passou a dizer mais ou menos o seguinte: Olha aqui, minha gente, essa homenagem é muito legal, coisa e tal, e eu estou aceitando porque é coisa de um funcionário do governo que é boa gente, mas não fique o governo,esse tal de Quércia, pensando que nós estamos aqui para apoiá-lo, porque, muito pelo contrário, não apoiamos porra nenhuma… E a platéia aplaudindo, aplaudindo…

Eu não sabia se chorava de emoção ou de pânico. À minha volta, nas poltronas ocupadas pelo pessoal do alto escalão do banco, o clima era glacial e piorava na medida em que o resto da platéia gargalhava e aplaudia. Menos mal, eu tentava consolar a mim mesmo, que o presidente não está lá no palco, ao lado do Plínio, como estava previsto, e pode disfarçar seu constrangimento aqui na penumbra da platéia. Mas, minha nossa!, uma hora ele vai ter que subir lá para fazer a tal homenagem. Então me deu uma vontade enorme de me sentar bem quietinho do colo da minha mãe, que se encontrava algumas fileiras atrás, com toda a família. E devia estar muito feliz, pois aquele moço lá no palco estava falando bem do filho dela.

Finalmente o Plínio deu por encerrado seu pronunciamento. Mas não terminou aí minha noite de emoções. O Nildo Masini subiu ao palco com o fair play que a situação exigia de qualquer pessoa fina, educada e inteliigente como ele. Anunciou, sob aplausos gerais, que o “Arte em Cena” continuava e que as inscrições para o ano seguinte estariam abertas dentro de poucos dias. Dedicou algumas palavras muito simpáticas a toda aquela maravilhosa gente do Teatro. E, já em o mesmo entusiasmo, grunhiu alguma coisa formal ao passar rapidamente para as mãos do Plínio o cartão de prata.

E os problemas teriam terminado por aí, se não fosse pelo fato de que, para dar um toque especial ao encerramento daquela parte da festa, tínhamos tido a criativa idéia de fazer com que o próprio Nildo Masini anunciasse o início da peça, dando as tradicionais batidas de Moliére (uma sequência de batidas no chão do palco com um pesado bastão de madeira).
Providenciamos o tal bastão, fizemos o presidente ensaiar as batidas e estabelecemos que, já que naquele instante só estariam no palco o Nildo e o Plínio, caberia a este entregar o bastão àquele.
No momento certo, o contra-regra fez chegar o bastão às mãos do Plínio. Tudo planejado nos mínimos detalhes. Menos, é claro, o singular senso de humor do nosso homenageado:
– Ô, presidente, pega aqui o pau do Moliére.
Este é o Plínio Marcos. O Plínio como ele próprio gosta de parecer.
***
O texto acima foi escrito em 1993 e destinava-se a ser publicado como Introdução à biografia do Plínio Marcos na qual eu estava então trabalhando, com o apoio e colaboração do próprio. De uma hora para outra, no entanto, por razões, algumas, que não consegui compreender nem aceitar e, outras, que não chegaram a ser claramente reveladas, o Plínio mudou de idéia. Decidiu que não queria mais continuar com aquilo. Talvez ele tenha percebido que o livro acabaria revelando – se eu tivesse competência para isso – o Plínio-de-verdade por detrás do Plínio que muitos julgam conhecer, exatamente porque é assim mesmo que ele gosta de parecer. Por não desejar escrever a biografia à revelia do biografado, suspendi o trabalho. Guardei as fitas e anotações de dezenas de horas de gravação com vários entrevistados e o texto da Introdução, que o Plínio já conhecia. O projeto, tenho certeza, será retomado algum dia. E fico torcendo para que Bendito maldito, título provisório que teria tudo para emplacar, venha a se tornar, então, um destaque no catálogo da Editora Senac-SP.

Fiquei provisoriamente sem Bendito maldito mas acabei ganhando a fantástica oportunidade de implantar uma editora. E na condição de editor fui outra vez atrás do Plínio, talvez para compensar um pouco a frustração do autor. Desta vez o entendimento foi rápido e fácil. Até porque o Plínio de hoje está sensivelmente diferente daquele de três anos atrás. Consequência, imagino, da conjugação de dois fatores determinantes: de um lado, uma bem sucedida mas sempre assustadora cirurgia cardíaca; de outro, o afeto generoso e a lucidez pragmática de Vera Artaxo, sua nova companheira.

Figurinha difícil é o título da primeira das histórias que compõem este livro. Pornografando e subvertendo é o da última. Juntos, eles encerram uma idéia quem traduz perfeitamente, com a dose adequada de cáustica ironia, não apenas o propósito inspirador deste volume, mas toda a trajetória de vida do autor. Apesar de que, hoje, depois de mais de 60 a nos intensamente vividos, Plínio Marcos não se considera exatamente uma “figurinha difícil”. Se tivesse que ostentar um rótulo – coisa que, aliás, odeia – ele talvez preferisse se definir apenas como “um ser em movimento”. E mesmo em seus tempos mais tumultuados, apesar de todas as aparências ele certamente não descreveria a si mesmo como um agitador que ardilosamente optou pela pornografia para atingir propósitos subversivos. Embora assim o enxergasse a miopia, esta sim, muitas vezes ardilosa, da repressão.

Plínio Marcos é um extraordinário contador de histórias. Porque fala a linguagem das ruas, essa coisa tão feia, há quem o considere pornográfico. Reclamava um amigo meu muito zeloso dos valores morais de dentro-de-casa: “Esse filho da puta só sabe escrever palavrão!” Porque bota a boca no trombone sempre que considera a raça humana agredida, muitos o têm como subversivo. E estão certos.

Pois é esse o Plínio Marcos que será encontrado neste livro: o autor de relatos que ilustram, com uma saborosíssima combinação de bom-humor, irreverência, indignação, amargura e, às vezes, crueldade, experiências que viveu e histórias que recolheu no meio da malandragem do cais do porto de Santos, da boêmia das noites paulistana, de artistas famosos como Solano Trindade, Cacilda Becker, Vicente Celestino e Procópio Ferreira, entre muitos outros. E que prefere o humor ao rancor quando relembra suas desventuras de autor mais censurado do país.

Quando perguntei ao Plínio quem ele gostaria de ter como prefaciador deste livro, a primeira resposta veio do Plínio que ele gosta de parecer: “Prefácio é coisa para autor bunda-mole, que não confia no próprio taco e precisa do aval de algum figurão. Não quero não!”. A segunda resposta, dias depois, partiu do Plínio que ele é: “Eu acho que só você mesmo pode fazer esse prefácio. Por que não bota lá aquele texto que já está pronto?”. É claro que a sugestão me envaideceu.
Coisa típica da inexcedível generosidade do Plínio. Reli o texto e mostrei-o a algumas pessoas de confiança, ansioso por que concordassem comigo na opinião de que seria adequado usá-lo. E o editor virou também prefaciador, com muita honra.

Só mais uma coisa: o Plínio deve estar de malandragem com todos nós. Entregou o número de linhas que havíamos combinado, mas omitiu muitas das histórias que ele próprio havia prometido. Certamente já está pensando – e aí tem dedo da Vera – no Figurinha difícil II.
Tudo bem. Uma editora que quer dar certo precisa mesmo de boas histórias…

A.P. Quartim de Moraes
São Paulo, maio de 1996

3 Respostas to “43-Plinio Marcos-Assim é, se lhe parece”

  1. Olguinha Salati Says:

    Muito bom, mestre Quartim! Ajuda a desvendar a “figura” incrível que conheci nas filas de teatro em SP, nos idos anos 60-70. Memoráveis, por sinal. Abraço.

  2. José Antonio Küller Says:

    Quartim

    Pela segunda vez você honra o blog publicando um texto seu. A segunda vez marca um rito de passagem: você já é da casa. Bem vindo.

    Abraços

  3. Marco Antonio Lima Says:

    maravilha! que figuras e que história! Lembro-me do dia que encontrei Plínio na frente do Teatro Municipal (se não me engano o balé Bolshoi se apresentava) com sua bolsa de pano, repleta dos seus livrinhos. ímpar!

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