Ecos da Repressão

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Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, 1968.

– Você sabe alguma coisa do Caio?

– Soube que ele estava tentando chegar no Uruguai …

Esta história começou bem antes. Em 1960 eu cursava o ginásio. Era o Instituto de Educação Cel. Bonifácio de Carvalho, a melhor escola de São Caetano do Sul, onde nasci e morei até 1972. Escola estadual, pública. Tive de fazer exame de admissão para entrar.

Dentre os colegas da turma havia dois que foram marcantes de forma bem diferente. Um era o “seu” Jaime, um carteiro de 45 anos no meio daquela garotada e que dizia que queria ser advogado. Outro era o Caio, com quem eu não tinha muita proximidade. Era valentão, brigador (fisicamente mesmo). Um dia inesquecível foi quando foi marcada a disputa entre ele e o Sérgio Batista, um negro muito forte, para decidir quem era o melhor de briga. Deu empate.

Num dia de exame oral estávamos vários colegas no pátio esperando pela hora de sermos chamados. O Caio estava muito nervoso, inquieto e veio me perguntar como eu fazia para ficar calmo. Disse a ele que a respiração profunda podia ser útil, pois aumenta a quantidade de oxigênio no sangue, irriga melhor o cérebro e favorece o relaxamento.

Ele resolveu tentar. Fiquei junto dele, praticando respiração. Depois de algum tempo ele estava mais tranqüilo. Foi para o exame oral e se saiu bem. Veio me agradecer.

Terminamos o ginásio e fomos por caminhos diferentes. Ele continuou no “Instituto”, eu fui para uma escola técnica. Em 1966 prestei vestibular para direito na USP e entrei. Em 67, quando começaram as aulas, encontrei na mesma turma em que eu estava aquelas duas figuras. O “seu” Jaime estava lá, mais próximo de seu sonho. E o Caio. Agora sereno, tranqüilo e poeta. E ativista político dos mais engajados, trabalhando na clandestinidade. Durante o tempo em que convivemos na faculdade ele foi uma figura pública apagada, mas muito ativo nos “subterrâneos”.

Em 1968, seguindo a onda dos acontecimentos mundiais, a faculdade foi “tomada” pelos estudantes que demandavam a abertura democrática, eleições, uma constituição digna. Alguns professores apoiaram o movimento. Dentre eles, duas grandes figuras: Gofredo da Silva Telles e Dalmo Dallari. Outros, como Esther de Figueiredo Ferraz, de que depois viria a ser Ministra da Educação, condenaram. Os meses que a ocupação durou foram de muita atividade. Todas as noites tínhamos alguma personalidade que aprecia lá para prestar sua solidariedade aos alunos.

Uma dessas figuras extraordinárias foi Mário Schemberg, professor da Física da USP. Já quase cego, ficou horas conversando com a turma. Um papo que poderia durar meses! Eu trabalhava durante o dia em São Caetano, mas todo final de tarde, assim que saía da empresa, pegava o ônibus e ia para a faculdade. Ficava lá até por volta das onze horas e depois voltava para casa. A pé até o Parque D. Pedro, onde pegava o ônibus. Descia em São Caetano e caminhava cerca de um quilômetro.

A “tomada”, inicialmente tratada com certa indiferença pelos órgãos da repressão, começou a incomodar. As manifestações dos alunos foram para o Largo São Francisco, e aí a polícia reagiu. Numa madrugada em que havia poucos estudantes no prédio, a tropa de choque desalojou a todos. Não houve resistência. A faculdade ficou ainda algum tempo fechada, mas depois reabriu normalmente. Quando voltamos às aulas, reencontrei vários colegas que não via há tempo. Foi a um deles que perguntei:

– Você sabe alguma coisa do Caio?

– Soube que ele estava tentando chegar no Uruguai, mas parece que em Santa Catarina pegaram ele.

Nunca mais se ouviu falar do Caio. Caio Venâncio Martins, estudante de direito, poeta e ativista político. Desaparecido.

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11 Respostas to “Ecos da Repressão”

  1. José Antonio Küller Says:

    Tarcísio
    Bem vindo ao grupo de autores do Arquivo68. Gostei muito de seu texto. Conciso e preciso, como o Jarbas recomenda. Esperamos outros.
    Küller

  2. comissão de familiares de mortos e desaparecidos Says:

    Felizmente Caio Venâncio Martins não é desaparecido politico. Esteve no Uruguai, viajou pelo mundo, como diz em algumas crônicas. Sobreviveu e não é difícil localizá-lo…

    • Euclide Garcia Paes deAlmeida Says:

      Conheci Caio em situações dramaticas, pois fui sequestrado pela policia urugaia junto com Claudio AntonioWeyne Gutierrez, el evado á um quartel de oficiais da reserva onde já estava detido ,há dias ,o CaioVenancioMartins. Fomosamigos , e depois nada mais soube dele até reencontra-lo via e-mail, mas depois perdi esse contacto.Sua ex companheira Marilia Angélica do Amaral, mineira que foi da “Correnrte” e também conheci no Uruguai e gostaria de reenconra-la. Quem souber dessas duas figuras me avise.Militancia passa, saudades de amigo nunca!
      Euclides

      • Caio Martins Says:

        Caro Euclides,

        entre em contato pelo e-mail caiomartins@cebinet.com.br. Espero que tudo esteja bem contigo, a vida a plena força e gratificante. Foram tempos duros, mas, sobrevivemos. Lembrei-me, dias atrás, de quando foram obrigados a soltar-nos, em Motevideo, e estávamos na “chancha” para sermos largados na 18 de julyo… Você, com uma lâmina de barbear que sabe Deus onde conseguira, escondida nas roupas… Felizmente, no fim deu tudo certo. De Marília, nunca mais soube.

        Abraços, e muita saudade.

  3. olavo rodrigues Says:

    apreciei o texto acima quando procurava por qualquer indício que me leve a descobrir quem possa ter a lista completa dos aprovados, no ano de 1967, no vestibular para Direito da Faculdade do Largo São Francisco. Por motivo de aceitar viagem ao exterior onde permaneci ate 1972 acabei por nao realizar o curso. Recentemente em assalto à minha residência tive roubados, entre outros, todos os papeís que comprovariam o meu ingresso naquela conceituada entidade. Se alguem possuir essa lista eu ficarei eternamente agradeicido.(a Secretaria da faculdade não possue mais esse arquivo)
    muito obrigado

  4. Caio Martins Says:

    Tarcísio,

    felizmente não “fui desaparecido”, por mais que tentassem. Ser briguento, no fim das contas, valeu alguma coisa, senão a vida. Como nunca briguei com ela, foi generosa comigo.

    Fora nítida lembrança de outros tempos, outras realidades, a veia libertária permanece. As palavras (“que tanto amo, talvez por isso as maltrate tanto”), também. Alguns amigos nos reunimos no Prosa e Verso de Boteco ( http://prosaeversodeboteco.zip.net/ ) e vou juntando meus textos no “Rapadura de Cordel”. Passe por lá.

    A quilometragem excessiva não permite mais tantas batalhas, mas, o espírito é o mesmo.

    Forte abraço.

  5. Jorge Cortás Sader Filho Says:

    Eita Caião! Você apronta não é de hoje! Isto deve ter material para romance. Começa! Quando der por si, já acabou…
    Abraço,
    Jorge

  6. Fatima Regina Negrão Says:

    Olá seria esse Caio meu primo? Filho de Jaime Venâncio Martins?

  7. Franscimere Cordeiro de Souza Says:

    uma facudade bem planajada e organizada, meu sonho seria estudar em uma desse …sonho impossível, amei a foto.. 🙂

  8. Carlos Augusto Rosemback da Fonseca Says:

    Soube em 1972 que a Marília havia sido presa pela PE em BH.Estudei com ela no Arquidiocesano de Ouro Preto. Depois nunca mais tive notícias. Se alguém souber do paradeiro dela, conte, por favor.

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